quinta-feira, 17 de março de 2011

Kant & Nietzsche I - Filosofia Transcendental

Immanuel Kant (1724 - 1804)
“O reino das sombras é o paraíso dos fantasistas”[1] — disse Kant em um texto que se notabilizou por aproximar os doutos metafísicos orgulhosos de sua ciência dos excêntricos que, não possuindo outro uso para o tempo ocioso e a vasta fortuna, dedicam-se a investigações duvidosas sobre espíritos e coisas semelhantes. Trata-se porém de uma semelhança enganosa, mas que em si mesma já denuncia a ambigüidade do futuro projeto crítico que define a própria modernidade:  denunciar as ilusões, revelá-las, trazê-las à luz e assim dissipá-las. Kant, Wittgenstein, Popper, mas também Nietzsche, Freud, Marx, Heidegger e Foucault — todos eles abandonaram o problema do erro em favor de um questionamento da ilusão, da alienação e de suas fontes; cada um deles acreditou de algum modo ter descoberto o fundamento da ilusão ou a ilusão mais fundamental. E assim, se nos é permitido tomar os exemplos mais díspares, uma análise comparativa entre a temática da ilusão em Kant e Nietzsche muito pode contribuir para a compreensão do desenvolvimento da epistemologia moderna.

Friedrich Nietzsche (1844 - 1900)
Aqueles que se refugiam no reino das sombras podem estar certos de jamais poderem ser refutados. Tão vão seria tentar convencer o excêntrico da inexistência de espíritos com os quais ele julga se comunicar, quanto o metafísico da deficiência de sua “ciência”. Mas desde então é preciso diferir dentre os que vagam sola sub nocte per umbras, aqueles que simplesmente crêem, para os quais qualquer credo quia absurdum basta, dos que julgam estar de posse de um saber racional e demonstrável. Seria vão ocupar-se de fanáticos e por isso só os últimos merecem consideração, portanto distinção. Se é verdade que o metafísico dogmático refugia-se em um domínio cuja possibilidade não pode ser rejeitada senão ao preço de um mais danoso fanatismo, não é menos verdade que, ao supor ter-se elevado a este domínio por razões de fato  ele deixa-se contrariar quer por outras razões igualmente plausíveis, quer pela insuficiência de suas razões. A diferença entre a certeza subjetiva do visionário e a suposta certeza objetiva do metafísico, ou melhor, a condição de possibilidade desta diferença é o pressuposto, a ser contestado pela Crítica, da objetividade da metafísica.


[1] Kant. “Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica” in Escritos pré-críticos, São Paulo, 2005, p. 143.

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