sábado, 23 de outubro de 2010

NIETZSCHE ( II ) - Cosmologia racional



O anúncio da morte de Deus marca, no pensamento de Nietzsche, a ruína da metafísica e o limiar de um projeto filosófico voltado à efetividade dada não mais em termos de aparência e de essência, de verdade e de erro, de bem e de mal. Tal projeto opera a partir de duas vertentes sincrônicas e correlacionadas: a digressão genealógica, em busca da procedência dos conceitos metafísicos e morais, e a reconstrução cosmológico-moral. É, com efeito, a partir de movimentos complexos, e no mais das vezes incompreendidos, que conceitos como vontade de poder, eterno retorno do mesmo, além-do-homem e transvaloração de todos os valores constituirão o que se convencionou chamar de “terceira fase” ou “fase tardia” da filosofia nietzscheana, voltada para a superação do niilismo.

O presente trabalho tem, a partir dessas indicações, a intenção de apresentar o aspecto cosmológico do projeto filosófico traçado por Nietzsche nos escritos que sucedem o anúncio da morte de Deus em A Gaia Ciência. Nesse sentido, nos deteremos em uma análise do conceito de vontade de poder, fundamental tanto para o procedimento genealógico quanto para as teses cosmológicas e projeções éticas. Mas por que não outro conceito? Em primeiro lugar, é forçoso que nos detenhamos a considerar que o conceito de vontade de poder exerce certa função capital com relação aos demais: ele é a determinação do Mesmo do eterno retorno, medida e determinação das forças, dos jogos de força e das configurações de forças que eternamente retornam; é o princípio da própria superação de si mesmo no qual desdobra-se a noção de além-do-homem; e, antes de tudo, é para o projeto de transvaloração de todos os valores, o fato último da instauração de valores; finalmente, enquanto determina a própria efetividade, aparece como antípoda do niilismo, evocando, na superação do mesmo, o instante da transvaloração, o eterno retorno dionisíaco, a aurora do além-do-homem. Não menos importante, contudo, é o fato de que o conceito de vontade de poder nos oferece, a partir de seu próprio aparecimento, o movimento no qual Nietzsche desenvolve suas teses cosmológicas e as implicações morais das mesmas. Nesse sentido, a compreensão da origem e da significação da vontade de poder é conditio sine qua non para a exposição dos temas cosmológicos em Nietzsche.

Aparentemente abandonada durante o “intermezzo cético”, a noção de vontade voltará, evocada pelo conceito de vontade de poder, a ser problematizada por Nietzsche em Assim falou Zaratustra, obra inaugural do pensamento tardio do filósofo. Oriunda da compreensão da vida e dos mecanismos fisiológicos do organismo vivo, a vontade de poder aparecerá com características que definem os processos vitais e a dinâmica do corpo. Como aponta Scarlett Marton, Nietzsche, “neste momento, caracteriza a vontade de potência como vontade orgânica; ela é própria não unicamente do homem mas de todo ser vivo” (MARTON, 1990: 30). Em alguns momentos Nietzsche chega a identificar a vida e a vontade de poder, como no § 349 do livro V[1] de A Gaia Ciência:



Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e sacrifica a autoconservação.
(...)
A luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente vontade de vida. (NIETZSCHE, 2991: 249-250).

O fato de Nietzsche utilizar nesse momento a expressão “vontade de vida” não nos deve conduzir a equívocos. A vida aqui é assimilada à própria condição de expansão e apropriação. Reter-se em um estado significaria contrariar o próprio caráter da vida, a conservação só aparece em estados indigentes. Por isso, a vida, concebida enquanto constante apropriação e expansão, aparecerá como fio condutor da genealogia. Assim, quando Nietzsche investiga a procedência dos nossos valores morais ele se depara com um intenso combate entre formas diversas de vida: uma, plena de condições, abundante, ativa e afirmativa; e outra, indigente e fraca, que busca na negação a única possibilidade de manter-se na existência. Fato é que, ainda que por negação, a vontade de poder nos fracos instaura os valores necessários a sua subsistência. A negação jamais se consuma enquanto tal, jamais se assume enquanto negação; antes, faz do desprezo e do repúdio ao mundo o único modo de permanecer no mesmo. O niilismo instaurado pela moral ascética resguarda o homem do niilismo suicida. Nesse sentido, mesmo na vontade de nada, ainda se expressa uma vontade de poder:

Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio – tudo isto significa, ousamos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, mas é e continua sendo uma vontade! E, para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...(NIETZSCHE, 1998: 149).

Estas últimas palavras da Genealogia da Moral nos oferecem a exata medida do pressuposto fundamental do procedimento genealógico: a vida é vontade de poder, só ela pode ser, como fato elementar, o critério de avaliação e instauração de valores. Toda crítica ao conhecimento, à ciência, à metafísica ou à moral deve partir daí. Contudo, se esta primeira assimilação da vida à vontade de poder permanecerá como cerne do procedimento genealógico, ela não esgota as possibilidades do conceito. Na verdade, nos escritos posteriores a Assim falou Zaratustra Nietzsche passará a considerar a vida como um caso particular da vontade de poder, cindindo assim, a própria distância entre o orgânico e o inorgânico. Nietzsche é, assim, levado a elaborar o que se chamou de “teoria das forças”, ampliando a possibilidade de compreensão da efetividade, e de aplicação do conceito de vontade de poder à mesma.

Assim como Schopenhauer, Nietzsche buscou no corpo o elemento de sua filosofia da vontade. Mas enquanto Schopenhauer aí encontrou o cerne da compreensão de uma vontade una, oposta à pluralidade de representações, Nietzsche nos apresenta o corpo mesmo como campo de forças plural, como determinada configuração de forças a partir de uma hierarquia. Com a teoria das forças que, segundo Scarlett Marton, nasce “na tentativa de resolver como se dá a passagem da matéria inerte à vida” (MARTON, 2001: 20), o conceito de vontade de poder adquire nova abrangência, referindo-se não apenas à vida, mas a tudo que existe, enquanto elemento de síntese das forças. Ainda segundo a autora: “É no âmbito das preocupações cosmológicas que Nietzsche postula a existência de forças, dotadas de um querer interno, que se exercem em toda parte” (MARTON, 2001: 21). O querer interno segundo o qual a síntese das forças torna-se possível – e, nesse sentido, a dinâmica geral do mundo enquanto eterno retorno do mesmo – é a própria vontade de poder. Nesse sentido, o problema cosmológico em Nietzsche aparece como determinação das forças, jogos de forças e configurações de forças sob a égide da vontade de poder.

Semelhante leitura já havia sido apresentada por Gilles Deleuze em Nietzsche e a filosofia, no qual o filósofo francês faz remeter a vontade de poder à noção de diferença: “a vontade de poder é o elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade das forças postas em relação e a qualidade que, nessa relação, cabe a cada força”. (DELEUZE, 1976: 41).

Tentemos, inicialmente, compreender como Deleuze opera as noções de força, quantidade e qualidade das forças. A força é essencialmente um aparecer e um exercício sobre outra força. Nesse sentido só pode ser pensada como pluralidade que se exerce, domina ou é subjugada por outra força: “O conceito de força é, portanto, em Nietzsche, o de uma força que se relaciona com uma outra força. Sob este aspecto a força é denominada uma vontade. A vontade (vontade de poder) é o elemento diferencial das forças” (DELEUZE, 1976: .5). Na medida, então, em que a vontade só pode se exercer sobre vontade – como afirma o próprio Nietzsche no § 36 de Além do bem e do mal – toda a dinâmica da efetividade seria reduzida a relações de forças e às configurações resultantes dessas relações. Nesse sentido, somos reconduzidos ao problema levantado por Deleuze: a medida das forças. As relações de forças, nas quais as forças mesmas adquirem sua determinação, e isso quer dizer, sua própria existência, são, segundo Deleuze, dados em termos quantitativos e qualitativos. A força possui uma quantidade, mas por ser inseparável da própria relação em que se exerce, a quantidade da força é dada segundo sua diferença de quantidade em relação a outras forças: “A diferença de quantidade é a essência da força, a relação da força com força” (DELEUZE, 1976: 35). Contudo, reduzir toda a efetividade a uma ontogênese quantitativa não seria ceder a um mecanicismo impraticável nos próprios termos da filosofia de Nietzsche? Mas, afirma Deleuze, a qualidade não é redutível à quantidade. Ela é justamente o inigualável na relação das forças, uma desmedida originária das forças sem o qual seríamos conduzidos ao mecanicismo.

A consideração de Deleuze da vontade de poder como ‘caráter intrínseco das forças’ deve ser efetivamente considerada – e nesse sentido melhor analisada – se pretendemos tratar dos conceitos de Nietzsche do ponto de vista cosmológico. Contudo, seria esta leitura suficiente para justificar a afirmação de que tudo é vontade de poder? Efetivamente Nietzsche afirma que “o mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de poder’ e nada mais” (NIETZSCHE, 1992: 43). Consideremos mais atentamente esta afirmação e algumas possibilidades de leitura.

A designação de Nietzsche no §36 de Além do bem e do mal – endossada por anotações particulares – de que “o mundo é vontade de poder” está no centro de inúmeras controvérsias acerca de uma compreensão ontológica ou cosmológica dessa afirmação e, em todo caso, da própria filosofia de Nietzsche. Se a leitura de Deleuze peca, na opinião dos comentadores mais ortodoxos, por atribuições excessivas dadas ao conceito de força, outras desviam-se de uma compreensão cosmológica justamente por desconsiderarem este conceito.

Dentre as leituras que dispensam pouca atenção à noção de força, a mais polêmica é, talvez, a de Martin Heidegger que faz das doutrinas do eterno retorno e da vontade de poder o núcleo fundamental de uma compreensão metafísica – leia-se ontológica – de Nietzsche. Questionável sob vários aspectos e tributária do próprio projeto filosófico de Heidegger, sua interpretação não deixa de ser altamente rigorosa e significativa para nossa pretensão de pensar os problemas cosmológicos em Nietzsche. Diante da impossibilidade de tratarmos detalhadamente da questão, contentemo-nos, por ora, em analisar alguns pontos fundamentais da leitura heideggeriana que consideramos relevantes para nosso presente propósito.

Para Heidegger, ao conceber o mundo como vontade de poder, Nietzsche responderia à ruína do supra-sensível com o estabelecimento do privilégio maximamente ôntico da filosofia. Com a morte de Deus a metafísica chega ao seu fim. Mas o fim da metafísica em Heidegger não possui o sentido de sua negação e de seu desaparecimento. Voltando-se inteiramente para o ente, a filosofia de Nietzsche consumaria o caráter próprio ao que se chamou de metafísica ou filosofia – termos sinônimos para o segundo Heidegger. O fim da filosofia é, então, expressa por dois eventos: o acabamento da metafísica enquanto máximo obscurecimento do Ser e a realização do caráter puramente ôntico da mesma por meio das ciências. No cerne do acabamento da metafísica está a determinação do ente enquanto tal como vontade de poder através do eterno retorno do mesmo. Para Heidegger, a vontade de poder pensa a essência do ente enquanto maximamente determinada pelo querer e pelo apoderamento. Enquanto a vontade de poder determinaria as propriedades do ente enquanto meios e condições de exercício do querer, o eterno retorno revelaria o modo de ser desse ente na totalidade em devir.

Embora os comentadores mais ortodoxos mantenham uma grande reserva quanto à leitura de Heidegger, e de um modo geral, quanto a uma leitura ontológica, tais leituras nos apontam uma radicalidade originária do pensamento nietzscheano, próxima talvez da cosmologia pré-metafísica dos antigos “físicos” pré-socráticos. Não nos parece possível, a partir das próprias afirmações de Nietzsche, negar que seu pensamento é perpassado por uma compreensão da totalidade do ente. Seguimos Wolfgang Müller-Lauter quando este afirma que “se compreendermos, porém, metafísica de modo muito mais abrangente, como o perguntar pelo ente em sua totalidade e enquanto tal, então temos que, segundo minhas concepções, designar também Nietzsche como metafísico” (MÜLLER-LAUTER, 2000: 72).

Não nos cabe aqui discutir sobre a aplicação do termo “metafísica” ao pensamento de Nietzsche. Nossa questão é, pois, de outra natureza. Por isso, consideremos antes de tudo que o que nos é imposto pela filosofia nietzscheana é uma noção muito particular da totalidade do ente. Nesse sentido, a mesma pergunta deve ser repetida explicitamente: que significa dizer que o mundo é vontade de poder?. Müller-Lauter está convencido de que a compreensão do mundo de que fala Nietzsche passa pela própria noção de forças evocada pelo filósofo para designá-lo. O mundo para Nietzsche é

... uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de “nada” como seu limite, nada de evanescente, de desperdiçado, nada de infinitamente extenso, mas como força determinada posta em um determinado espaço, e não em um espaço que em alguma parte estivesse “vazio”, mas antes como força por toda parte, como jogo de força, ondas de forças ao mesmo tempo um e múltiplo. (NIETZSCHE, 2005: 450-451).


O fragmento possui duas afirmações fundamentais: o estatuto limitado das forças e a determinação uno-multiplicitária desse quantum de força. Como pode ser o mundo ao mesmo tempo um e múltiplo? Ora, é claro que se desejamos falar de um “todo” só podemos nos referir a ele como unidade, e o cerne dessa unidade é sua limitação. Um todo infinito nem mesmo poderia ser pensado[2]. Contudo, se Nietzsche afirma que “tudo” é vontade de poder, não nos é mais possível evoca aí a noção de unidade, pois a vontade de poder é fundamentalmente múltipla. A solução para Müller-Lauter é considerar a unidade apenas sob o ponto de vista da organização na medida em que “só uma multiplicidade pode ser organizada em unidade. Trata-se, no múltiplo organizado, de ‘quanta de poder’, se, pois, o único mundo não é nada mais que vontade de poder” (MÜLLER-LAUTER, 2000: 74).

Nesse sentido podemos compreender que o “todo”, enquanto unidade, nada mais é senão uma configuração momentânea de uma quantidade limitada de forças múltiplas em eterna “polêmica”; que o mundo é a cada vez a mesma totalidade de forças cuja unidade efêmera só é alcançada pelo simples arranjo dos jogos de força em um instante; que cada instante carrega o peso de seu retorno eterno.

Como afirmamos inicialmente, o conceito de vontade de poder arrisca-se a exercer uma função determinante em relação aos demais. Verdadeiramente, uma cosmologia pautada nesse conceito, enquanto máxima expressão do caráter do mundo, e sobre a tese do eterno retorno, enquanto criação maior do pensamento cosmológico de Nietzsche reorganiza sua “ruminação” e a projeta em direção ao seu horizonte: a transvaloração dos valores e a aurora do além-do-homem.

Embora todas a leituras que apresentamos até agora – de Deleuze, de Heidegger ou mesmo a dos comentadores mais ortodoxos – não tenham podido esclarecer satisfatoriamente o estatuto do pensamento cosmológico em Nietzsche, todas elas apontam nesta direção, mesmo aquelas que não tratam explicitamente do tema cosmológico. Enquanto Deleuze, por exemplo, nos apresenta uma leitura privilegiando a noção de força (e em alguns casos até mesmo extrapolando as possibilidades de tal noção no âmbito rigoroso dos textos de Nietzsche) Heidegger, por outro lado, praticamente não evoca tal conceito e não pretende pensar algo como uma teoria das forças em Nietzsche. Ambos incorrem na mesma infidelidade: tornar sua leitura tributária de seus próprios projetos filosóficos. Isso não quer dizer que devam ser desconsideradas. Muito pelo contrário, acreditamos ter êxito em nosso empreendimento apenas na medida em que confrontarmos estas e outras leituras com os próprios textos de Nietzsche.

Ainda é cedo, contudo, para avaliarmos decisivamente o estatuto da cosmologia nietzscheana. Fiquemos por ora, e a título de conclusão provisória, com as palavras de Scarlett Marton acerca da cosmologia de Nietzsche:

Que na obra de Nietzsche se constrói uma filosofia da natureza ou, em suas próprias palavras, uma cosmologia, é o que pretendemos mostrar. Ao ser elaborada, é ela que vai servir de base, a partir de determinado momento, para a reflexão sobre os valores e, em particular, os valores morais. O filósofo espera encontrar o ponto de ligação entre as ciências da natureza (Naturwissenschaften) e as ciências do espírito (Geisteswissenschaften). (MATON, 1990: 13).

O pensamento cosmológico de Nietzsche diz: o mundo é vontade de poder, o homem mesmo é um ab-ismo de vontades de poder, ou seja, relações de força, de domínio e de hierarquia em perpétuo devir. Cada consideração sua da existência, cada interpretação e perspectiva só pode, então, falar a partir dessas relações de poder, macro e microfísicas. Com relação ao humano, a cosmologia de Nietzsche reafirma o lugar dado à vontade de poder no cerne da valoração e, conseqüentemente, da transvaloração. Nesse sentido, deve ser entendida, também, a partir da dimensão ética, horizonte maior da filosofia nietzscheana. Por fim, é forçoso que nos detenhamos a considerar que a última palavra do pensamento da vontade de poder, como bem concluiu Müller-Lauter, só pode ser o amor fati, que evoca o exercício incondicional da vontade em meio ao mundo necessário e caótico do eterno retorno.

Viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa –, pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não receie nenhum meio! Isso vale a eternidade! (NIETZSCHE, 2005: 442).


Referências Bibliográficas


DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Jolffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1992.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril, 2005.

MARTON, Scarlett. Nietzsche; das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990.

MARTON, Scarlett. Lobo, cordeiros e aves de rapina – um diagnóstico de nossos valores morais in: Filosofia, nº12: p. 13-22, 2001.

MULLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. de Oswaldo Giacóia Jr. e Apresentação de Scarlett Marton. São Paulo: Annablume, 2000.




[1] O livro V de A Gaia Ciência, no qual consta esta referência à vontade de poder, só foi inserido na segunda edição da obra em 1887. É, portanto, posterior a Assim falou Zaratustra, obra na qual o conceito de vontade de poder aparece pela primeira vez também com características que o identificam à vida.


[2] Há ainda a possibilidade de compreender a determinação unitária como interpretação, perspectiva. O mundo de que fala Nietzsche no §36 de Além do Bem e do Mal é um mundo em seu ‘caráter inteligível’. Dessa forma, ao determiná-lo enquanto vontade de poder Nietzsche não se aproximaria de qualquer pretensão fundante. Se a razão engendra a armadilha da unidade é apenas como atribuição a uma organização inteligível da multiplicidade dada. Sobre essa questão são pertinentes as análises de Müller-Lauter (op.cit. p.75 e p.120) e de Oswaldo Giacóia Jr. Ver: GIACOIA JR. O mais oculto de todos os escondidos. In: Olhar – vol.2, n°2. São Paulo: UFSCar, 1999. p. 10.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

NIETZSCHE ( III ) - Eterno Retorno do Mesmo

“O eterno retorno é uma idéia misteriosa, e Nietzsche com essa idéia, colocou muitos filósofos em dificuldade” — Com estas palavras o escritor tcheco Milan Kundera, inicia seu romance que não por acaso se chama A insustentável leveza do ser. Nenhum interesse nos despertaria esta asserção não fossem as sucessivas interpretações (e isso quer dizer também corrupções e falseamentos) de que foi alva a filosofia de Nietzsche durante o turbulento século  que nos separa de sua gênese. Seriam apenas os filósofos que se veriam em dificuldades diante desse pensamento? Ou, mais propriamente, seria essa dificuldade intrínseca ao jogo ambíguo que caracteriza o modo pelo qual Nietzsche ora o anuncia ora renuncia total claridade ao que ele mesmo denominou o mais poderoso dos pensamentos. Onde reside a dificuldade se tantas vezes Nietzsche enuncia tão claramente o eterno retorno como hipótese cosmológica da recorrência de todas as coisas, e cada coisa na mesma ordem, e eternamente? Onde reside o poder do eterno retorno como o mais poderoso dos pensamentos? São estas as duas questões fundamentais que nos guiam neste acercamento da doutrina nietzscheana.

I

Segundo o relato que o próprio Nietzsche nos dá a conhecer em sua autobiografia, o pensamento do eterno retorno lhe adveio no verão de 1881 enquanto caminhava pelos bosques de Silvaplana. Sua exposição se dá um ano depois na primeira edição de A gaia ciência. Retomemos este texto inaugural:

O maior dos pesos — E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem — e assim também essa aranha e este luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A perene ampulheta da existência será sempre virada novamente — e você com ela, partícula de poeira!” — Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!” Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (Nietzsche, 2001: 230)

Aparentemente deveríamos compreender esse anúncio do seguinte modo: a hipótese murmurada pelo demônio poderia ser tomada como um fardo absurdamente pesado e insuportável, mas também como a definitiva justificativa da existência. Ou na mesma existência, os momentos de prazer justificariam os momentos de dor e assim o homem poderia se resignar perante o destino. Esta seria a compreensão convencional do eterno retorno tão criticada por Gilles Deleuze e por seus comentadores; um dele, Dr. Sandro Kabol Fornazari, defende que nessa compreensão:

... resta à vontade humana desejar seu destino tal como ele é, aceitar amorosamente a realidade em todos os seus aspectos, do sofrimento mais pungente  à mais intensa felicidade, na medida em que elas se condicionam mutuamente. Em outras palavras, não é possível regozijar-se das alegrias da vida sem reconhecer que o encadeamento que a efetivou está permeado de angústias e tristezas. Tomando consciência disso, duas reações seriam esperadas, segundo Nietzsche: ou amaldiçoar-se-ia o eterno retorno como o mais pesado dos pesos ou tal pensamento transformaria aquele que o acolhesse, fazendo com que ele não desejasse nada de diferente do que a vida que se apresenta, e todo seu peso estaria com que justificado, porque com eles retornarão também os momentos de leveza, de grandeza e de ardor (FORNAZARI, 2006: 19-20).

Escusado dizer que o comentador, defendendo a leitura deleuziana, se opõe veementemente a uma tal compreensão, pretextando que há uma incoerência entre o eterno retorno concebido como retorno do igual, do mesmo ou do idêntico e as teses de Nietzsche que, segundo Deleuze e seus seguidores, combateriam justamente essas categorias. Essa corrente interpretativa opta por uma resolução duvidosa do problema: mudar a natureza do eterno retorno fazendo-o “eterno retorno da diferença”. Não entraremos em detalhes sobre essa opção no momento, mas gostaríamos de mostrar que a compreensão adequada do eterno retorno se estabelece em outro âmbito: que não há justamente incoerência nenhuma entre a filosofia nietzscheana em sua vertente crítica e corrosiva e o pensamento do eterno retorno do mesmo, adequadamente compreendido.
Voltemos, portanto, ao parágrafo de A gaia ciência. Nele, o eterno retorno é apresentado como uma hipótese que reclama uma decisão. Mas é preciso mais finesse para apreender tal hipótese. Quem a murmura é um daymon, um demônio cuja natureza (boa ou má) não está decidida; o que a decide é a própria decisão sobre o sentido do que ele anuncia. A decisão dá-se a partir do estado daquele que recebe anúncio: ele amaldiçoará se não puder querer sua existência, e seu próprio ser, tal como eles são, e o abençoará se num momento de plenitude puder aceitá-la e desejá-la eternamente. Tudo aqui parece corroborar a compreensão convencional de que falávamos antes: “A dor diz: ‘Passa momento’/Mas quer todo prazer eternidade/ — Quer profunda, profunda eternidade” (NIETZSCHE, 2005: 378) — diz a canção de roda de Zaratustra.
Assim, aparentemente, só o prazer pode desejar o eterno retorno e o guardar-se na eternidade. Mas eis a dificuldade: o prazer não pode justificar a dor, a própria idéia de justificação permanece estranha à filosofia de Nietzsche. Segundo o filósofo nenhum ato pode modificar outro. A idéia de justificação é uma idéia teleológica e não caberia num pensamento que quer justamente eliminar toda teleologia. Devemos concordar então que a compreensão que apresentamos como convencional não pode encerrar a possibilidade de pensar o eterno retorno.
Atentemos para esse fato: o parágrafo de A gaia ciência apresenta somente dois aspectos desse pensamento fundamental: o pensamento do eterno retorno do mesmo tal com ele é, e as reações possíveis daqueles que são entregues a tal pensamento. Nisso se esgotaria tudo o que dele podemos apreender? De forma alguma. Não há dúvida de que o pensamento do eterno retorno deve conduzir ao amor fati, a compreensão de ambos deve dar-se mutuamente. Não por acaso nesta mesma obra Nietzsche profere a palavra pela qual o eterno retorno adquire seu significado ético: “Amor fati! Seja este, doravante o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser algum dia, apenas alguém que diz sim!” (NIETZSCHE, 2001: 187-188) Do mesmo modo, o amor fati é apresentado de modo inda pouco decisório. Renunciar a negação não significa ainda a plena afirmação, mas somente abstenção e recusa. Somente algum dia há de vir a plena afirmação, somente algum dia também poderá ser ele aquele que tornou-se capaz de afirmar.
Por que tantas indecisões? Por que esta obra, A gaia ciência, não expõe claramente o pensamento que o filósofo já havia desenvolvido particularmente? Porque justamente o que está em jogo aqui é a decisão sobre o porvir humano enquanto grande enfrentamento com o niilismo. Detenhamo-nos, então, diante do abismo no qual Nietzsche joga e aposta com Perséfone. A gaia ciência dispõe este terrível embate a partir do anúncio da ‘morte de Deus’.
II

Gott ist todt! (Deus está morto) é a palavra pela qual Nietzsche é ampla e vulgarmente conhecido. Todos já a ouviram, mas sua compreensão exige mais do que uma leitura apressada. Tentemos nos acercar desse enunciado fundamental. Ele se inscreve no livro III D’A gaia ciência, anterior aos aforismos que se referem ao amor fati (276) e ao eterno retorno (341).
O que é a morte de Deus? Nietzsche a chama de Ereigniis (acontecimento). O acontecimento não é afirmado, pressuposto, imaginado ou teorizado, mas anunciado como algo que já se deu e está dado irremediavelmente. Seu anúncio começa como uma busca, uma procura: “Procuro Deus! Procuro Deus!” – grita o homem louco na praça do mercado e, não tendo acolhida dos que lá se encontravam (crentes e ateus) ele insiste: “Para onde foi Deus?”, pergunta retórica logo respondida: “Nós o matamos – vocês e eu. Somo todos seus assassinos!” Seria isso possível? Como é possível o finito devastar o infinito e ser-lhe o algoz? O mesmo estupor acomete o louco: “Como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol?”(NIETZSCHE, 2001: 147-148) Deus está morto não é uma afirmação ateísta, mas a constatação de que a instância que governava e doava sentido ao mundo foi arruinada e, por mais perturbador que possa parecer, por um ato humano. Deus significava aí não apenas o Deus cristão, mas o supra-sensível e o Ideal que há séculos governava a existência humana; a dicotomia entre o mundo do devir, da dor, do sensível e perecível, tal como ele se mostra, e um mundo além-dele e estranho a ele como sua imagem invertida. Se era nesse mundo além-do-mundo que a existência humana alicerçava  seu sentido, se era ele o próprio sentido enquanto direção e finalidade, então “Deus está morto” significa “nada tem sentido”. A recusa do sentido mostra-se como a mais desesperadora indigência:

Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sois? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? (Nietzsche, 2001: 148)

Tais indagações colocam a morte de Deus como o mais indecisório dos eventos. Nada pode ser respondido e nada pode ser dito. Tal indecisão não deve obscurecer o fato de que ela é o acontecimento mais decisivo da história ocidental. Justamente porque é acontecimento e, como tal, circunda e delimita duas propriedades distintas. Poderíamos pensar, a princípio que se trata apenas da ruína do ideal vigente que assim descobre a experiência humana como algo desprovido de sentido. Mas o acontecimento é mais amplo. Deus morreu refere-se a dimensão passada que fazendo-se presente coloca-o sob a égide do Deus morto, das sombras de Deus. Essa morte, então, cinde dois domínios distintos: um remoto passado no qual Deus habitava como instância supra-sensível dos valores supremos, governando o sentido da existência humana, e um futuro sempre presente no qual habitamos a ruína desse Ideal. Entre os dois reconhecemos o que há de decisivo na morte de Deus, situada em algum ponto que não podemos determinar. Pois o acontecimento deixa-se compreender como o que não se circunscreve em um determinado espaço e tempo. Evento duradouro, cuja amplitude decide o destino humano. Mas circunscrevendo o domínio do ideal que vigeu e o domínio da ruína desse ideal ele aponta também suas próprias fronteiras, a extrema distância que pode ser ultrapassada. Ultrapassar o niilismo pode significar, então, atravessar a fronteira que separa o domínio da ruína do ideal que vigeu (niilismo ativo) para um domínio de sentido inda não determinado, um novo ideal talvez. Como isso seria possível? Conhecemos a natureza do domínio da ruína do supra-sensível, ela é a ausência de sentido, sua fronteira deve ser, como extrema consumação a extrema forma do niilismo, o sem-sentido absoluto, o sem sentido eterno. E é justamente a contradição intrínseca ao eterno retorno que antecipa essa fronteira na qual a ultrapassagem é possível.
Embora a morte de Deus seja um acontecimento irrecusável, dele, os homens, assassinos e criminosos no mais alto grau, permanecem apartados. “Eu venho cedo demais” — são palavras do louco, mas também são palavras de Zaratustra, o sem-Deus (Gottlose). Incipt Tragoedia: com esse aforismo, semelhante ao prólogo de Zaratustra, Nietzsche encerra A gaia ciência. Somente em Assim falou Zaratustra, as contradições e ambigüidades podem aparecer em sua forma essencial: destruição, criação e reviravolta – estes são também os elementos fundamentais da tragédia grega. Incipt Tragoedia, começa a tragédia, começa o Zaratustra. Zaratustra é justamente a tragédia do enfrentamento e superação dos dois domínios do niilismo (Deus e Nada) cuja chave é a contradição intrínseca ao eterno retorno, em que a reviravolta é possível.
III

Nietzsche considerava Assim falou Zaratustra seu maior presente para a humanidade. Nós a devemos considerar como o marco inicial de seu pensamento maduro. Neste poema em prosa o filósofo apresenta seu pensamento em toda a sua positividade. Mesmo o que há de negativo, de crítica e ataque aos seus conhecidos adversários, só aparece aí como fronteira e marco de fronteira, a partir da qual a doutrina nietzscheana procura se destacar. Se estamos certos nessa consideração Zaratustra não poderia deixar de expor esse pensamento, o do eterno retorno, que Nietzsche considerava o ponto culminante de sua filosofia. E, em verdade, Zaratustra é antes de tudo “o mestre do eterno retorno”. Não seria talvez exagero algum dizer que as doutrinas correlatas da vontade de poder e do sobre-humano somente adquirem sua consistência máxima em relação ao pensamento fundamental do eterno retorno do mesmo. Não podemos, no momento assegurar quais relações perpassariam esses conceitos, mas apenas acenar para o fato de que dificilmente podem ser compreendidos de forma totalmente dissociada.
            O eterno retorno aparece em Assim falou Zaratustra na forma de um relato de Zaratustra aos seus companheiros de viajem quando deixava as ilhas bem-aventuradas, logo ao início do livro III. Àqueles que ele chama “ébrios decifradores de enigmas” Zaratustra relata a visão de um grande enigma, o enigma do pastor. Segundo seu relato, por duras sendas havia carregado nas costas seu demônio, seu mortal inimigo, o espírito de gravidade, embora este a todo o momento lhe murmurasse ao ouvido o custo de sua elevação: “Ó pedra da sabedoria! Arremessaste-te para o alto, — mas a pedra arremessada deve cair!” Contudo, diante da advertência de Zaratustra “tu não conheces o meu pensamento abismal! Esse tu não poderias suportá-lo!” o demônio salta lhe das costas e é nesse momento que ambos encontram-se diante do portal que se chama “momento”. Zaratustra expõe então o pensamento abismal com o qual ameaçara o anão:

Olha este portal, anão! Ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se juntam; ninguém os percorreu até o fim.
Essa longa rua que leva para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para a frente — é outra eternidade.
Contradizem-se, esses caminhos, dão com a cabeça um no outro: — e aqui, neste portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal está escrito no alto: ‘momento’.
Mas quem seguisse por um deles — e fosse sempre adiante e cada vez mais longe: pensas, anão, que esses caminhos iriam contradizer-se eternamente? (NIETZSCHE, 2005: 193)


            Os dois caminhos se contradizem. Que quer dizer isso? O caminho que leva para a frente é infinito e não temos dificuldade alguma em pensar esse progressum ad infinitum; o tempo e com ele o universo podem subsistir  eternamente no porvir, jamais chegando à uma estabilidade do ser ou a dissolução no nada. Contudo, o regressum ad infinitum, pelo qual Schopenhauer mostrou a invalidade do primeiro conflito antinômico kantiano, era no fim do século XIX objeto de intenso debate. Nietzsche corrobora a tese de Schopenhauer contra Kant e afirma não haver nenhuma contradição em pensar que do instante presente possa-se recuar indefinidamente sem jamais chegar a um termino. O argumento de Kant, segundo o qual se o a tempo fosse ilimitado no passado o instante presente seria o fim de uma série infinita é considerado por Nietzsche como um sofisma que toma os pés pela cabeça. Assim, do mesmo modo que no primeiro caso, o regressum ad infinitum não é apenas uma operação restrita ao âmbito da nossa imaginação, mas aponta que o universo, o todo, não proveio da concretude do ser nem emergiu, por obra de um deus ex machina, do nada.
            Esses dois caminhos são contraditórios, possuem direções contrárias, mas partem do portal, do instante. Eles se contradiriam eternamente? — pergunta Zaratustra ao anão que prontamente tenta antecipar a conclusão a que chegam as premissas lançadas: “Tudo o que é reto mente! Toda verdade é torta, o próprio tempo é um círculo”. Assim, o demônio tenta antecipar um pensamento que ainda não foi pronunciado, deixando as premissas de Zaratustra indicarem meramente a idéia de um tempo circular e com isso incluí-la entre as hipóteses de um universo cíclico — e é preciso lembrar sem dúvida que essa idéia já era deduzida de outras teorias, e largamente conhecida ao fim do século XIX). Embora o pensamento do eterno retorno, inda não pronunciado, não seja absolutamente contraditório à asserção do demônio, como querem alguns comentadores, o pensamento de Zaratustra é diverso de todas as concepções cíclicas do universo, seu caráter é singular e suas conseqüências terríveis não poderiam deixar-se velar na mera afirmação da circularidade do tempo. A objeção de Zaratustra refere-se ao modo simplório do anão e sua perspicácia em querer esquivar-se do eterno retorno. Zaratustra jamais objeta contra a natureza do eterno retorno do mesmo conquanto ainda tenha de enfrentar suas conseqüências terríveis. Pois justamente o eterno retorno significa o retorno de todas as coisas:

Olha, este momento! Desse portal  chamado momento, uma longa, eterna rua leva para trás: às nossas costas há uma eternidade.
Tudo aquilo, das coisas, que pode caminhar, não deve já, uma vez, ter percorrido esta rua? Tudo aquilo, das coisas, que pode acontecer, não deve já, uma vez, ter acontecido, passado, transcorrido?
E se tudo já existiu: que achas tu, anão, desse momento? Também este portal não deve já — ter existido?
E não estão todas as coisas tão firmemente encadeadas, que este momento arrasta consigo todas as coisas vindouras? Portanto também a si mesmo?
Porque aquilo, de todas as coisas, que pode caminhar, deverá ainda, uma vez, percorrer — também esta longa rua que leva para a frente!
E essa lenta aranha que rasteja ao luar, e o próprio luar, e eu e tu no portal, cochicando um com o outro, cochichando de coisas eternas — não devemos, todos, já ter estado aqui? — e voltar a estar e percorrer essa outra rua que leva para a frente, diante de nós, essa longa, temerosa rua — não devemos retornar eternamente? (NIETZSCHE, 2005: 193-194)

            O eterno retorno significa que tudo o que é possível se efetivar já se efetivou e o instante testemunha que ele mesmo deve retornar, e retornar eternamente. Partindo do instante duas eternidades se consumam no mesmo instante: o instante é eterno e cada mínima coisa nele está fadada a possibilidade única de ser exatamente como é. Todas as coisas que podem efetivar-se se efetivam eternamente e, assim também, o encadeamento com que são concatenadas nesse curso. Nesse sentido, todas elas estão aprisionadas à fatalidade dessa tornar-se-sempre-o-que-são.
            Ao pronunciar o eterno retorno Zaratustra é acometido de medo, medo de seu pensamento e das conseqüências implícitas a ele. Seu temor é logo a seguir justificado pelo enigma do pastor: “Quem é o homem em cuja garganta se insinuará tudo o que há de mais negro e pesado?” — eis o enigma. A princípio afirmaríamos que é o próprio Zaratustra, e que esta visão é a visão de sua enfermidade e convalescença, pois por sete dias Zaratustra permanecerá doente, diante do homem tal como ele é, o eterno retorno pesará para ele como o mais pesado dos fardos. Mas é o próprio Zaratustra que desperta mais uma vez seu pensamento abismal e, assim, fazendo, sucumbe ao nojo. Ao fim dos sete dias, porém, se recupera e é interpelado por seus animais:
                       
Ó Zaratustra, para os que pensam como nós, as próprias coisas dançam: vêm e dão-se a mão e riem e fogem — e voltam.
Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.
Em cada instante começa o ser; em torno de todo o ‘aqui’ rola a bola ‘acolá’. O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade. (NIETZSCHE, 2005: 259-260)

            A estas palavras Zaratustra não objeta, como acreditam alguns fazendo referência à objeção contra o anão, mas sorri complacente, reconhecendo que também seus animais haviam compreendido que era ele o pastor do enigma e, por lhe relembrarem isso, Zaratustra os chama “farsantes e realejos”. Há uma só objeção de Zaratustra: de que seu pensamento do eterno retorno, que o permitiu naqueles sete dias fazer a mais profunda experiência trágica, não seja repetida e transformada em “modinha de realejo”.
            Mas, qual era a enfermidade de Zaratustra e como ele se cura dessa doença? Já o dissemos: é o grande nojo pelo homem, pelo homem pequeno – e por toda humanidade na medida em que esta se mostra pequena demais, o maior dos homens é ainda por demais humano. Mais do que nunca Zaratustra deve assumir que “o homem é algo que deve ser ultrapassado”. Mas o consolo de saber que o homem não é um fim, mas um meio, é apenas isso, um consolo, não uma cura, não uma redenção. A questão deve portanto permanecer: como Zaratustra se redime de seu nojo?
            “Onde habita o perigo é lá que também cresce o que salva” — Disse Hölderlin uma vez. E é no mesmo sentido que se dá a reviravolta trágica de Zaratustra. Zaratustra se redime na medida em que reverte o sentido do eterno retorno. Pois, se tudo está fadado a retornar exatamente como é, ele também está fadado a se-tornar-o-que-é: mestre do eterno retorno e prenunciador do sobre-humano. Este é o seu destino e somente o amor incondicional a tal destino pode ser considerado como redenção. De todo modo amar o próprio destino significa também amar e desejar tudo, incluindo o homem e sua misera história, exatamente como são.
            Zaratustra é o pastor do enigma. Mas o homem, a humanidade histórica, também o é na medida em que também esta padece de uma doença análoga, ou da mesma doença em âmbito histórico. Se assim considerarmos, a redenção do niilismo, sua ultrapassagem, deve ser análoga á cura de Zaratustra: deve repousar na mesma contradição que ora fez Zaratustra sucumbir. É justamente esta reviravolta histórica que é prenunciada por Nietzsche no segundo livro de Assim falou Zaratustra, no título “Da redenção”. Aí Nietzsche descreve o desenvolvimento do espírito de vingança que conduz ao niilismo moderno e a possibilidade de sua superação como redenção da vontade.


IV


Se o texto publicado em A gaia ciência nada mais faz que insinuar e acenar para o pensamento do eterno retorno, o mesmo não acontece com as anotações particulares que serviram de base para compor o aforismo. Não se trata mais de uma hipótese lançada na noite mais solitária por um demônio, nem da batalha trágica de Zaratustra contra seu demônio pessoal, o espírito de gravidade; mas, da afirmação categórica do próprio filósofo que assume esse pensamento numa afirmação visceral:

Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez e circular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo sempre se escoará outra vez —, um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir dos quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso e inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as coisas. Esse anel, em que és um grão, resplandece sempre outra vez. E em cada anel da existência humana em geral há sempre uma hora, em que primeiro para um, depois para muitos, depois para todos, emerge o mais poderoso dos pensamentos, o pensamento do eterno retorno de todas as coisas: — é cada vez, para a humanidade, a hora do meio-dia. (NIETZSCHE, 2005: 442)

Talvez agora possamos esboçar uma compreensão mais adequada desse pensamento e, assim, nos desvencilharmos das falsas interpretações. Nietzsche não afirma que o universo oscila ou pulsa de um estado inicial para um estado final, perfeitamente idênticos. O todo, que é um imensurável anel, não possui início ou fim, somente aqueles que pensam em um circulo sendo construído acreditam que se deve compreender que há um ponto no circulo idêntico à outro ponto (essa era a conclusão que foi tirada da filosofia do inconsciente de Hartmamm, mas não devemos confundir Nietzsche e Hartmamm; não devemos sobretudo confundir o eterno retorno com outras hipóteses de um universo circular). Sem dúvida, Nietzsche rejeita a identidade porque no curso circular do anel nada pode ser idêntico a si mesmo (duradouramente) ou à outra coisa, sob a égide do devir. O círculo está dado e nele cada instante pertence a si mesmo e vigora na eternidade; cada coisa está em conexão com todas a coisas de tal modo que o retorno só pode significar a recorrência do próprio curso, do concatenamento de todas as coisas que podem se efetivar. O retorno só se dá no âmbito da totalidade cosmológica, excluindo a repetição histórica e a recorrência na mesma série de identidades. Nesse sentido, se o todo retorna, retornam todas as coisas segundo sua exata conexão: o eterno retorno significa que todas a coisas são necessárias (nem liberdade, nem determinismo), mas a pura necessidade em tudo e em cada coisa.
Não nos teria escapado o que se insinuo sob nossas palavras e não foi explicitamente afirmado?: que o eterno retorno evoca o sentido aterrador de todas as coisas, a fatalidade de seu ser eternamente transitório; que, o mundo, e nele cada mínima coisa, não se encaminha nem para a realização plena, nem para a definitiva nadificação; que, finalmente, imagem da contradição, a vontade que tudo podia agora já não possui poder algum, nem mesmo para mudar um grão de areia. Tudo é necessidade, tudo é fatum, tudo é destino. Haveria ainda algum sentido em falar de uma vontade, inda mais de uma vontade criadora, se tudo é necessidade? Haveria ainda algum sentido e falar de “sentidos”, se todas a finalidades perderam a consistência? Mas há, sem dúvida, para Nietzsche, uma vontade criadora. Uma vontade que só pode querer o que foi querido e eternamente deve querer; uma vontade que só pode criar o que já infinitas vezes criou e está destinada a criar por toda eternidade; uma vontade, enfim, que só pode querer o necessário, com a necessidade de ser ela mesma necessária. Pois, “Qual pode ser a nossa doutrina?” – indaga o filósofo em O crepúsculo dos ídolos. Ele mesmo responde:

Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade de seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será (...) Cada um é necessário, é um pedaço do destino, pertence ao todo, está no todo (NIETZSCHE,2006: 46)

Aqui habita o perigo, aqui também cresce o que salva. O amor fati deve adquirir uma significação muito mais fundamental. Não pode ser considerado um imperativo ético análogo ao imperativo categórico de Kant. Sem dúvida ele envolve uma decisão, mas esta não se refere aos atos que expressam a vontade (estes são necessários) e sim à vontade mesma, ao querer que atribui sentido a esses atos. De qualquer forma, ainda assim, não se trata de uma vontade intencional que possa fazer escolhas, mas do poder, da quantidade de força, da capacidade  da vontade em querer a si mesma eternamente. O amor fati é, antes, a expressão dessa vontade criadora que cria eternamente o mesmo e o celebra como sua criação, que quer eternamente o mesmo e o celebra como seu querer. Ao assumir o que é necessário como sua criação, a vontade, essa vontade criadora reconcilia-se com o tempo – antes, a razão maior de seu desespero e origem de sua loucura, a vingança. A necessidade que antes habitava o passado (todo Foi-Assim) é a última limitação da vontade, a pedra que ela não pode mover. Precisou ela, justamente, elevar todas as coisas à mesma necessidade para ultrapassá-la, tornando-a criação sua: é o sentido que ora se atribui à necessidade, é a necessidade tornada sentido.

Viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa —, pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço seu mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso seu mais alto sentimento, que repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não recei nenhum meio! Isso vale a eternidade! (NIETZSCHE, 2005: 442)

            Somente aqui poderíamos reconhecer um tipo de face seletiva do eterno retorno, mas trata-se de uma seletividade que adere, sobretudo, ao pensamento do eterno retorno e ao seu aparecimento no âmbito histórico. Tal pensamento marcaria justamente a ultrapassagem do ideal vigente, e das ruínas desse ideal, dispondo um novo espaço existencial para o humano. Mas para Nietzsche este é um evento de longa duração. O meio-dia da humanidade, o meio caminho entre o animal e o sobre-humano, não advirá como uma conseqüência do ensinamento desse pensamento, mas do fato de que ele constitui a única alternativa frente à morte de Deus e, por isso, há de vigorar aos poucos pois

tem de embeber lentamente, gerações inteiras têm de edificar nele e nele torna-se fecundas — para que ele se torne uma grande árvore, que dê sombra a toda humanidade que ainda virá! O que são alguns milênios, nos quais o cristianismo se conservou! Para o mais poderoso dos pensamentos é preciso muitos milênios —, por muito, muito tempo ele tem de ser pequeno e impotente. (NIETZSCHE: 2005: 442)

            Agora sem dúvida nos parece mais claro onde habita a contradição, o perigo e a redenção. O eterno retorno de todas as coisas, do mesmo, do igual, significa que cada coisa é necessária e eternamente necessária, seu ser é fatum, destino, é somente o que é e não há qualquer sentido em falar de um sentido que não seja a pura facticidade (fatalidade) do ser. “Essa — dirá Nietzsche — é a extrema forma do niilismo: o nada (o sem-sentido) eterno!”. Mas também é, segundo nos mostra o próprio filósofo, a única forma de ultrapassá-lo.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Economia ( I ) - Escola Austríaca

§1. Poderia começar uma breve definição da Escola Austríaca afirmando ser uma escola heterodoxa, pouco conhecida nos próprios meios econômicos. Com isso, efetivamente me prestaria a um sem números de mal-entendidos, os quais prefiro evitar pelo bem da clareza. "Heterodoxos" devem, melhor, ser nomeados os modismos e dogmatismos no pensamento econômico corrente: o marxismo, o equilibrismo e o keynesianismo. "Ortodoxo", pelo bem do entendimento, deve ser vocábulo reservado ao que, prima facie, nos aparece como correto, porque o que é evidentemente correto só pode deixar de sê-lo pela ficção da teoria.
"Onde o homem encontra somente palavras, crê que também aí há algo para ser pensado", entoava Goethe. Entretanto, não se trata aqui de uma disputa de palavras. Os austríacos - assim denominaremos os pensadores dessa escola daqui por diante - reivindicam uma longa tradição que remete aos escolásticos espanhóis, a passar pela revolução marginalista de Menger, chegando, obscurecida, ao nosso século pelas fantasias socialistas.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

DESCARTES ( I ) - Meditationes de prima philosophia

A distância entre a duvida natural (vulgar) e a duvida metafísica (hiperbólica) reside justamente no procedimento metódico da ultima e no fato de que a mesma é empreendida através de um ato da vontade cujo fim ultimo não é o ceticismo, mas a construção positiva do conhecimento metafísico. Nesse sentido a duvida cartesiana como duvida metafísica não se esgota na suspensão do juízo, ou melhor, seu esgotar-se é um superar-se que já estava previsto desde seu inicio.

Como resultado do procedimento da dúvida, o argumento do Gênio Maligno havia forçado Descartes a decidir pela suspensão do juízo diante da impossibilidade de fundamentar até mesmo as verdades matemáticas. Entretanto na Segunda meditação quando novamente evocado o referido argumento, um certeza passa a subsistir sem que possa ser colocada em duvida: a certeza de que a proposição Ego sum, Ego existo é indubitável; isso, porém, não resolve inteiramente a questão da Segunda meditação sobre a natureza do espirito humano uma vez que só prova que o próprio espirito existe. A natureza do espirito (mentis) humano só é determinada quando o Ego sum torna-se Ego sum rés cogitans – eu que indubitavelmente sou, sou tão somente coisa pensante. Nesse sentido a proposição Ego cogito ( Eu penso) já se encontra subentendida na conquista da certeza do Ego sum e na superação da duvida hiperbólica.

A primeira meditação (meditatio prima) se atém exclusivamente a fundamentação da duvida hiperbólica e pela enumeração metódica dos argumentos que a constituem: argumento do erro dos sentidos e sua radicalização; argumento do sonho; argumento do Deus enganador e do Gênio Maligno, ambos com o mesmo propósito. Nesse sentido nenhuma das antigas verdades tidas como certas pôde suster-se ante o procedimento cartesiano.

A Segunda meditação (meditatio secundâ), partindo do resultado do procedimento da dúvida, ou seja, da certeza de que nada é certo, direciona-se para a conquista da certeza de que se sou enganado, ou se me engano, eu que sou enganado ou que me engano, sou indubitavelmente alguma coisa; por sua vez esta coisa é unicamente coisa pensante (rés cogitans). Tal é a determinação da natureza do espirito (mentis) humano sendo que esta é tida por Descartes como mais fácil de ser conhecida do que a natureza dos corpos ( rés extensa), segundo a determinação que se encontra no fim da meditação (exemplo do pedaço de cera).

domingo, 3 de outubro de 2010

FOUCAULT ( I )



Las meninas. Velázquez
Se é verdade que do ponto de vista da História da Filosofia a modernidade nasce a partir da fundação da metafísica cartesiana do sujeito, não é menos verdade que o espaço arqueológico aberto por Foucault executa uma importante inflexão no sentido da temporalidade desta história e da determinação da organização do pensamento a partir da descoberta da configuração geral do mesmo: a epistémê. O questionamento da arqueologia foucaultiana, em seu minucioso procedimento de revirar os arcabouços da história, não é, contudo, pela condição de possibilidade de um determinado pensamento ou do pensamento de modo geral – não se trata, aqui, de uma avaliação epistemológica ou transcendental – mas da forma como estes pensamentos ou discursos se organizam, aparecem e desaparecem, podem ser pensados em determinadas épocas e não em outras, brotando de um determinado solo epistémico que lhes sustenta e possibilita seu surgimento. Não se trata muito menos de uma história ou de um procedimento historiográfico, mas de um empreendimento muito mais essencial que busca determinar as rupturas, limiares e limites da três diferentes ordens de pensamento que vigoraram na cultura ocidental as partir do abandono da concepção aristotélica da Idade Média. É a essa arqueologia, cujos fundamentos ainda precisaremos determinar, que recorreremos a fim de elucidar a questão primaria que inquietou o pensamento ocidental desde o séc. XVII: o problema da subjetividade.

Foucault não nega que o cogito cartesiano exemplifica e como que inaugura uma nova era da historia do ocidente, mas esta não é a modernidade, e o classicismo que, abandonando o jogo das similitudes da Renascença, institui-se com uma nova epistémê, que, apesar de possuir em Descartes seu mais ilustre representante não se reduz ao mesmo: “Embora possamos dizer que a idade clássica é, fundamentalmente, cartesiana, e a leitura original das Regulae demonstra isso, não podemos cair na armadilha reducionistra do autor ou da obra” (TERNES, 1998: 21); ou ainda nas palavras do próprio Foucault: “... esse é um fenômeno geral da cultura do século XVII – mais geral que a ventura (fortune) singular do cartesianismo”

A idade clássica é a idade da representação em que o universo pode ser ordenado através da análise e unicamente pelas vias da razão.[1] Isso não impede, entretanto, que a incompatibilidade entre representante e representado perpasse toda a idade clássica. Ora, a epistémê do classicismo não pode assegurar o representante e o representado ao mesmo tempo, e, na medida em que a representação representa-se como pura representação, o “lugar do rei” – como em las meninas de Velásques – permanece vazio; a pergunta pelo fundamento da representação é impossível. Entretanto, é na medida em que esta incompatibilidade desaparece que o ocidente experimenta outra curvatura na forma de seu pensamento e a idade clássica desaparece, como também havia desaparecido a Renascença, retrai-se sobre si mesma para que a modernidade possa constituir-se.

Foucault utiliza as empiricidades para demonstrar o desenvolver-se da passagem da epistémê clássica para a epistémê moderna. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a História Natural só se torna possível a partir da configuração ordenativa e taxinomica da epistémê clássica, ela deve ceder lugar à Biologia tão logo o classicismo desapareça. O mesmo acontece com a Análise das Riquezas e com a Gramática Geral que só podem fundar-se no solo clássico, sendo substituídas, respectivamente, pela Economia Política e pela Filologia na aurora da idade moderna. É imprescindível observar que a História Natural, a Análise das Riquezas e a Gramática Geral não são formas menos desenvolvidas da Biologia, da Economia e da Filologia, respectivamente. Na verdade, não há nenhuma relação de parentesco entre elas, pertencem a épocas diversas e à formas diversas de pensamento.

Encontramo-nos, então, no limiar da modernidade, cuja epistémê determinará o surgimento de um novo personagem na história do pensamento ocidental ao lado das novas empiricidades: o homem. O pensamento de Kant aparece, então, como exemplo mais visível da configuração epistémica da modernidade. Entretanto, se para alguns filósofos, a exemplo de Husserl, Kant não é mais que um continuador do projeto cartesiano de uma metafísica do conhecimento com sua filosofia transcendental; ou ainda para Heidegger que vê na filosofia crítica de Kant a continuidade de um longo error da metafísica iniciado por Platão; ao contrário, para Foucault o “Eu penso” kantiano tem tanto a ver com o cogito cartesiano quanto a Biologia tem a ver com a História Natural, ou a Economia com a Análise das Riquezas; muito pelo contrário, são pensamentos frutos de epistémês diversas que jamais poderiam conviver sob o mesmo estatuto ou sob a mesma ordem discursiva. Ou seja, como nos indica José Ternes: “Procurar, na cultura ocidental, os ancestrais da vida, da produção, da linguagem, e do próprio homem, significa pôr-se a caça do que não existe”. (TERNES, 1998: 135)

Junto às novas empiricidades e ao aparecimento do homem a modernidade é marcada pela analítica da finitude “em que o homem poderá fundar, na possibilidade delas, todas as formas que lhe indicam que ele não é infinito” (FOUCAULT, 2000: 434). Nesse sentido, a finitude não é pensada pela modernidade apenas negativamente como na idade clássica em relação ao infinito, mas ocupa lugar de fundamento e de condição do conhecimento da epistémê moderna.

Tal finitude é dada pela reduplicação da experiência do saber, uma vez que se refere impreterivelmente aos conteúdos positivos da linguagem, da vida e do trabalho; por outro lado, tais conteúdos só podem dar-se à experiência humana do conhecimento na medida em que este tem formas finitas.

A partir da analítica da finitude que o pensamento moderno funda-se sobre três duplos já assinalados pela filosofia critica de Kant: empírico e o transcendental; cogito e o impensado; recuo e retorno da origem. Nesse sentido o conhecimento pode dar-se duplamente ao nível dos fundamentos e das condições de possibilidade e ao nível empírico a partir dos conteúdos positivos da ciência. Entretanto, não na clareza de um cogito, mas na estranha nebulosa dimensão entre o limite de todo conhecimento possível e aquilo que se encontra aquém ou além de tais limites no espaço obscuro do essencialmente não pensado – aqui Kant aparece não como um moderno, mas como pensamento limite entre a idade clássica e a modernidade, uma vez que em seu sistema a positividade do conhecimento é dada tão somente dento dos limites do mesmo – este impensado, contudo, não é excluído do pensamento, antes, e é absorvido por este segundo o estatuto de sua própria finitude (veja-se por exemplo a tentativa de resgate de um pensamento essencial por Heidegger ou a temática do Trágico em Nietzsche). Mas é ainda no espaço epistémico do advento do homem que um terceira duplicidade se instaura; a questão da origem das coisas sempre recuada em relação ao homem e do homem mesmo, cuja origem não pode fundar; por outro lado, com Hoederlin, Nietzsche e Heidegger a questão torna-se uma temática de um possível retorno da origem.

Mas se é verdade que a modernidade se constitui sobre uma epistémê que, na relação três vezes duplicada do saber fez nascer as ciências empíricas e as ciências humanas e como objeto desta, funda o ser do homem sobre estes duplos, é verdade tambem que a relação positiva com o impensado – na psicanálise e na etnologia – e a própria configuração do pensamento moderno sobre sua própria finitude, resgatando de um espaço esquecido o ser da linguagem, indica o horizonte de abertura da possibilidade e da promessa quase ameaçadora de seu fim; a morte do homem é anunciada. Fato é, que o homem funda o seu ser no intervalo entre duas formas de linguagem e que o retorno dessa, desde o fim do século XIX, ameaça devolvê-lo a obscuridade ou a dissipá-lo na aurora de uma nova ordem de pensamento.

Entretanto, esta não é mais uma questão da arqueológica, ou antes, encontra-se no limite de um tal pensamento. A arqueologia de Foucault só pode nos revelar as configurações epistemicas do tempo histórico que ainda é o nosso tempo e também o tempo do homem, em que as disposições da epistémê moderna lhe conferem existência e visibilidade; mas também alertando, prometendo ou ameaçando que:

“Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a proximidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico – então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia” (FOUCAULT, 2000: 536)



[1] É importante observar, aqui, que a loucura é excluída do procedimento do método na meditação primeira de Descartes. Tal ruptura foi analisada por Foucault em História da loucura..